Texto retirado do livro “Ritos Barnabíticos”, escrito pelo Padre Miguel Maria Favero, traduzido por Padre João Maria Carlos Colombo – 1965
A piedade
Ao Espírito Santo pede-se, antes de mais nada, immensam tuae pietatis gratiam: a desmedida graça da piedade de Deus.
Quem, de fato, poderia medi-la? A piedade de Deus tem braços tão grandes!…
Com efeito é preciso tôda a imensa bondade do bom Deus para apiedar-se de um ser tão frágil e, ao mesmo tempo, tão escravizado pelas paixões e pelas culpas; é preciso tôda sua imensa piedade para estimá-lo e crer que êle seja capaz de fazer algo de bom. Se não fôsse heresia, ousaria dizer que a Piedade de Deus é tão grande a ponto de, por vêzes, velar-lhe os olhos e iludi-lo acêrca de muitos dos seus chamados… Seria o mistério de Jesus que se renova?
Não obstante, Deus não cessa de ser imensamente piedoso. Nunca porém se torna tão necessário invocar a piedade como nesta ocasião: a piedade que esqueça o passado, que se compadeça do presente, e que generosamente se antecipe ao futuro. É justamente isso que nós pedimos a Deus Espírito Santo, digo, ao Deus-Amor que vê na sua criatura tão somente a imagem das perfeições impressas por Ele e a vida que é o seu hálito.
Nada mais do que isso. O amor tem os olhos fechados, quando se trata de distribuir a bondade e de derramar a piedade que perdoa e conforta.
Affectum devotionis. É a outra graça, que pedimos ao Espírito Santo. Diria que é ainda a piedade, mas num sentido ativo, isto é, a comunicação da mesma piedade de Deus, pois dela o homem precisa para servi-Lo e amá-Lo. Passa, então, a ter outra definição: da parte de Deus, piedade é um sentimento de compaixão; da parte do homem, é, ao invés, affectum devotionis, quer dizer: afeto filial, tenra devoção, santo entusiasmado nos deveres religiosos.
Aquêle que é chamado à perfeição não se iguala aos outros muitos cristãos, que se limitam à fuga do pecado mortal. Sua preocupação não é mais a fuga do mal, e, sim, a adesão ao bem: interessa-lhe unicamente o que o aproxima sempre mais de Deus, o que lhe faz saborear a união com Êle e lhe comunica as delícias da paternidade dêle.
Tudo isso é efeito do Dom da Piedade, que o Espírito Santo concede graciosamente às almas de eleição. E o religioso deve ser uma delas. Caso contrário, viveria como o mais infeliz dos homens, pois sua existência seria insuportável. Os deveres da vida claustral têm de ser todos deveres de amor, doutro modo não teriam sentido algum.
O afeto de devoção deve, portanto, despertar o gôsto da oração, a solicitude do serviço, a alegria da renúncia e do sacrifício.
Mas só o dom do amor pode dar isso. Essa é a razão pela qual o pedimos ao Espírito Santo, pois Êle se manifesta onde Êle quer: ubi vis aspiras. E desde que Êle quis dar-se a conhecer na revelação, digne-se também completar sua obra, fazendo com que a luz pela qual brilhou se transforme em ardor que inflame a alma daquele afeto de devoção que é o sentimento básico de tôda elevação espiritual, energia de tôda dedicação e confôrto inalterável em todas as provações.
Deprimentes impietatis obligationes in eo dissolve.
Dissolve nêle os oprimentes vínculos da impiedade.
Creio que a palavra impiedade aqui deve ser tomada em sentido muito limitado, que nada tem com o ímpio. Não penso em andar errado, interpretando-a no estreito sentido etimológico non pietas. Nesse caso, a oração pediria agora numa forma negativa o que antes fizera de um modo positivo: “tirai-nos tudo o que não é amor, o que deprime e não alivia, avilta e não enobrece”. O que não é piedade é trabalho de escravo e se faz por temor, medindo tudo de uma forma comercial, de acôrdo com o salário e as satisfações.
Quando amamos e agimos como filhos, não sentimos tais fardos. Caminhamos na liberdade e recusamos tudo o que nos faz parar e amolecer o espírito. São Paulo diria: sollicitudine non pigri, spiritu ferventes, spe gaudentes (Rom XII – 11).
Visitas humanas e cálculos egoístas devem desaparecer. A vontade de Deus e a glória de Deus são os únicos impulsos de tôda atividade espiritual. Nenhum motivo pode deter-nos. Interêsse algum. Deus torna-se assim o único ponto de referência para dar valor a tudo e – meu Deus e meu tudo – torna-se o lema-propaganda de todos os movimentos da vida, centro inspirador de todos os desejos que não trazem desilusões, porquanto Deus é o tesouro que não falha, o refúgio que nos conforta e em tôda aflição, o amigo, o pai que sempre encontramos e que nunca nos trairá, nem jamais nos abandonará.