Texto retirado do livro “Ritos Barnabíticos”, escrito pelo Padre Miguel Maria Favero, traduzido por Padre João Maria Carlos Colombo – 1965
Vida Nova
Já desde a primeira leitura do ritual da vestição do noviço salta aos olhos a ideia dominante do rito: despir o homem velho e vestir o homem novo, ideia caracteristicamente paulina, que aparece repetidas vezes nas epístolas do Apóstolo e que poderia ser considerada como eco das palavras de Jesus: — é preciso renascer.
Diz o ditado que o hábito não faz o monge: está certo; mas o hábito significa o monge; e basta também sozinho, para lembrar-lhe sua profissão e dar a tonalidade à sua pessoa.
Por isso, a vestição do noviço é feita com solenidade, ainda mais quando a cerimônia celebra-se na igreja pública e pode ser assistida pelos fiéis.
A vestição posto que não tenha compromissos iguais aos da profissão, é já, por si só, um passo decisivo na vida religiosa: seria para a profissão o que é o noivado em relação ao casamento; uma promessa que contém a intenção de se tornar irrevogável por meio de um nó, que nunca mais será desatado.
A cerimônia começa com esta oração: “Ó Deus, que pelo Vosso coeterno Filho tudo que criastes e que, pelo mistério da sua Encarnação, Vos dignastes renovar o mundo envelhecido pelo pecado…”
Vamos parar por aqui, pois há algo que nos faz pensar.
Então, não nos diz nada a expressão: “o mundo envelhecido pelo pecado?”
O mundo, criatura de Deus, nunca deveria envelhecer. Quem criou conserva, e conservar significa infundir sempre novas energia, para que, na renovação da vida, também o mundo possa perpetuar sua própria existência, crescendo sempre em progresso e perfeição; entretanto….
O pecado, que nos trouxe a morte- per peccatum mors – é também o que faz envelhecer. A velhice é, de fato, o prelúdio da morte, que se manifesta no declínio das forças e na dissolução das faculdades.
Quanta velhice nas falsas doutrinas religiosas e nas erradas teorias filosóficas! Elas tanto mais se dissolvem, quanto mais pensam que estejam reformando-se. Reparemos na diversidade de fé e de ideias nas seitas religiosas que brotaram do desmembramento da única fé. Examinem-se os vários sistemas filosóficos, que partem de um falso principio da negação da verdade. Como se perdem em fórmulas incapazes de construção! E que labirinto inextricável do qual não se consegue sair por falta de uma orientação clara! No entanto, as paixões que são sempre as primeiras interessadas, estabelecem-se e firmam-se. Longe porém de trazer um hálito de vida nova, cansam a alma e o corpo, precipitando-os numa velhice precoce, que é esterilidade de ideias e infecundidade de virtudes.
O “vosso mundo velho é muito horrível” (E. Browning), tão horrível como tudo o que não tem vida, e é um cúmulo de demolições.
Haja visto o mundo antigo com seus erros e vícios, assim como o mundo atual com as suas ilusões e heresias: um e outro horríveis e velhos! E não nos deixemos enganar pelas conquistas materiais, pelas comodidades econômicas, pelos progressos científicos, pois todas essas coisas, dignas embora de admiração, não servem para restituir a paz à humanidade, fazer renascer a justiça e tornar a vida fecunda de bem. Temos de nos convencer de que o mundo é mesmo velho. Justiça e Amor embelezam a vida e não tem sucedâneos: os paliativos que se inventam são provisórios e, portanto, ineficazes.
Não há que admirar. O pecado (pois o erro é pecado, o vicio é pecado, a desordem das paixões é pecado) é sempre afastamento de Deus, que é a única e inexaurível fonte de vida. Até quando o mundo teimar em desviar-se de Deus terá que envelhecer até morrer.
Mas o mistério da Encarnação é força renovadora. É o divino que se enxerta no humano e lhe infunde energias de vida eterna, dessa vida eterna que não sujeita nem a perigo nem a velhice. A encarnação opera a redenção, que livra o homem do tempo e da caducidade e o fixa na novidade da vida. Dá a graça que é infusão de natureza divina; dá a verdade, que, ensinando a vontade de Deus, mostra o bem e dá a força para realizá-los; dá o amor, que facilita o sacrifício e conforta na dor; acima de tudo, a Redenção aponta, para além dos horizontes terrenos, panoramas fulgurantes de eternidade e nos garantes a conquista.
Esta é a renovação que os séculos não conseguem destruir, e que multiplica incessantemente sua obra em cada alma que renasce no batismo, em cada pecador que se arrepende, em cada desencaminhado que volta. Essa é a renovação que, se consegue penetrar nas mentes escurecidas, resplandece em luz que se não apaga, e acende chamas de ideias em cada vontade, comunicando-lhe energias santificadoras. Nada a detém, nem mesmo no limiar da morte, pois justamente quando a vida se dissolve e está prestes a se iniciar a corrução, essa é a única força que, se o homem quiser, poderá recompor-lhe a vida, reparando o passado e inspirando-lhe tal alento de esperança, que lhe garante no futuro a vida imortal, a felicidade eterna.
Isso é o que Deus, criador de tudo, sabe fazer; sabe criar de novo e renovar o que é velho, até fixa-lo na juventude perene que nunca mais envelhece.
Entretanto, para obter esse efeito vivificante de renovação, é necessário que o homem renuncie a tudo o que pode fazer envelhecer: abrenuntiationem saeculi.
Já disse, o mundo é que envelhece e faz envelhecer. Ele é feito de anos, e os anos passam; e formado de vicissitudes humanas e essas cansam, desfibram e matam com seus contrastes, suas loucuras e consequentes desilusões.
Por isso, o religioso que quer andar in novitate vitae renuncia ao mundo, ao século e fará até um juramento, por ora, vai ensaiar.
Renunciar ao que é velho, trocando-o pelo que é novo, é saber calcular bem. Bom negócio é esse de deixar o mundo por Deus. Entretanto, se Deus não dá, ele próprio, a graça de compreender tal vantagem e a força para a realização, o homem, apesar de tudo, é tão tolo que prefere o contrario, isto é, o que envelhece e o que passa. Sente a tentação sem trégua pelo imediatismo, e pelo desejo de preferir o que é belo aos olhos e agradável ao paladar a tudo o que é alegria para a inteligência e felicidade para o coração.
Daí a oração a Deus para que esse seu servo que se propõe renunciar ao século seja por ele benignamente assistido, a fim de que possa merecer despojar-se do homem velho e revestir-se do homem novo criado à imagem da perfeição divina.
Segue-se uma oração comovente a Jesus Cristo, já comentada anteriormente, e mais outra para pedir o Divino Espirito Santo.
Assim, pode-se dizer que todas as três Pessoas Divinas foram invocadas sobre o homem que deve transformar-se e criar-se novamente.
Ocorre-nos, pois, o belo plural do Gênesis: faciamus hominem, onde alguns pretendem vislumbrar traços da revelação trinitária. Faciamus: fala o pai causa eficiente, fala o filho causa exemplar, fala Espirito Santo causa vivificante. Faciamus: e a ação d’eles, harmonizada em um único ato de vontade e de amor, produz aquele ser que se chama homem, tão grande que pode refletir a imagem de Deus e tem a capacidade do infinito e da imortalidade.
E, agora, que esse homem deve deixar o mundo, onde tudo é morte, e entrar no caminho da vida, como é necessária a intervenção de Deus, que repete: Faciamus!
Por isso, invocou o pai para que se digne olhar para ele; basta um olhar para Deus realizar maravilhas, in terram respexit, implevit illam bonis (ECL 16-30).
Invocou Jesus: Domine Iesu Christe, Jesus que é o caminho, para que o proceda, o reconheça como uma das suas ovelhas, e lhe faça ouvir a sua voz, vox imitationis tuae,e deste modo a alma não venha a perder-se nunca entre os espinhos do deserto, mas siga a estrada que conduz para a porta, a qual é ainda ele – Ego sum ostium ovium,e possa entrar para a vida.
Finalmente invoca o Espirito Santo. É indispensável. É sempre ele que encerra as operações divinas: uma pessoa que não pode agir sem as outras. O Espirito Santo dá o último toque, orna com a última graça, põe o último selo da obra.
Mas que é que pedimos em particular ao Espirito Santo?
Vamos ler com atenção a oração que O invoca, e assim: compreenderemos, com a ajuda dos breves comentários que a seguem, o objeto do pedido que deve interessar a quem inicia uma vida nova.
“Ó Espirito Santo, que Vos dignastes revelar-Vos aos homens Deus e Senhor, nós Vos pedimos graça imensa da vossa piedade, para que assim como soprais onde quereis, assim também sejais indulgente, dando a esse vosso servo o sentimento da devoção; e, pois que foi criado pela vossa sabedoria, seja governado pela vossa providência. Que a vossa unção, segundo a graça que Vos é própria, lhe ensine a cumprir todos os deveres, e, pela intercessão de São Paulo Apóstolo que invocamos como padroeiro desta Ordem e dos Santos em cujo nome eleva a suplica, convertei-o decididamente das vaidades do mundo. E, pois que sois a remissão de todos os pecados, desatai-lhe os vínculos deprimentes da impiedade, e fazei que ele se empenhe na observância deste Santo proposito com tal fervor que possa, pela vossa incessante consolação, respirar à vontade nas tribulações e angustias, para que na justiça e piedade, mediante a verdadeira humildade e obediência, arraigado na caridade fraterna, possa em observância fiel cumprir tudo quanto pelo vosso do promete, se Vos dignardes conceder-lhe a graça de realiza-lo”.