Por: Pe. José M. Ramos Mercês, Sacerdote Barnabita

Ocorre encontrar, com certa frequência, a informação inexata de que a construção da Basílica de Nazaré foi obra quase exclusiva do padre Luigi Zoia ou do padre Afonso Di Girgio, com o que se ignora a participação precípua que nela teve o padre Emilio Richert – conquanto todos pertencentes à mesma Ordem dos Clérigos Regulares de São Paulo, chamados de Barnabitas.

A 30 de novembro de 1927, após 14 meses de longa e terrível enfermidade, decorrente de tumor nas cordas vocais, falecia no Rio de Janeiro o padre Emilio M. Richert. Ele contava 61 anos de idade, 13 destes passados em Belém do Pará. Multidão de amigos, religiosos e fiéis lotava a capela do Colégio Santo Antonio Maria Zaccaria, na Rua do Catete. Cartas, telegramas e homenagens afluiam de todas as partes. Um cotidiano fluminense notificava: “A notícia repercurtiu, dolorosamente, em todos os círculos sociais desta cidade, onde era muito estimado (…). O ilustre Barnabita, tanto pelas suas virtudes sacerdotais, como pela avantajada cultura eclesiástica de que se apercebera, era vulto de inconfundível destaque no clero regular desta Arquidiocese. Além das qualidades de espírito, o padre Richert era um cavalheiro de maneiras fidalgas, traindo, no trato com as pessoas, a sua origem elevada de uma das mais distintas famílias da Alsacia”.

Traços biográficos

Emilio Antoine nasceu de Joseph Richert e Marie-Anne Kecklen, em 2 de fevereiro de 1866, em Mulhouse (Alta Alsacia). Embora escassas as notícias referentes tanto à família quanto à infância, sabe-se descendente de uma estirpe burguesa “onde a fé e a virtude eram transmitidas de geração em geração, como as mais preciosas heranças”. Vinha, pois, de “uma raça enérgica, raça de soldados e missionários”. Tinha quatro anos quando estourou a guerra franco-prussiana, terminando com a vitória da Alemanha, que arrebatou à França a Alsacia e a Lorena, passando os alsacianos a fazer parte da vencedora nação alemã. Não obstante, considerava-se cidadão francês e, ardoroso patriota, não tolerava o chamarem de alemão. Tudo contribuiu a rendê-lo de natureza forte, de decisões firmes: virtuoso, meticuloso, volitivo, saberia virar-se em todas as situações, não sendo o tipo indeciso.

Tendo ao lar o respaldo de vigorosa educação religiosa, aos seis anos entra no Colégio Lassalista, onde cursa, por oito anos, os estudos primários e comerciais. Adquirindo sólida educação técnica, aos 14 anos começa a trabalhar em casa de comércio, o que lhe possibilitará prematura habilidade e tato em negócios. Emilio tinha a seu favor todas as vantagens para constituir-se um futuro brilhante, mas, será em meio às ocupações com os números que despertará ao chamado divino.

Assim, aos 20 anos (1886), entra no Seminário dos Barnabitas junto ao Colégio São Francisco de Sales, na cidade francesa de Gien. Sem perda de tempo, em quatro anos recupera “Les Humanitès et La Philosophie”. Desde 1888, aproveitando de sua notória competência, os padres confiam-lhe a adminsitração e a contabilidade do próprio colégio, tarefa que absorve até sua ida para o novicidado em Mouscron, Bélgica, em setembro de 1890. Recebendo aí o hábito religioso, transcorre o “ano de prova” com empenho, tendo contato com o Servo de Deus Padre Carlos Shilling, renomado pintor norueguês, protestante convertido. Essa convivência incidiria não pouco sobre a já austera espiritualidade do jovem.

Transcorridos 12 meses, eis a avaliação dos superiores: “Nós o exercitamos de várias maneiras nas práticas de mortificações, e este Noviço mostrou, sempre, verdadeiro espírito religioso. Sofre de escrúpulo, mas é em vias de cura. De resto, sua exatidão, obediência e piedade não foram desmentidas neste ano de noviciado um dia sequer. Nós temos confiança de que esta graça (de professar os votos religiosos) produzirá bons frutos em Dom Emilio, será para a edificação de todos e em vantagem da Congegação, sendo ele dotado de bom tino e de inteligência acima do comum”. Era 21novembro de 1891.

Segue, então, para Roma, onde, por dois anos, estuda a Teologia, concluindo-a em Paris, onde é ordenado sacerdote, em fevereiro de 1894. Destinado ao Colégio de Bourges, foi professor e administrador até o seu fechamento em agosto do mesmo ano, sendo encarregado da liquidação dos negócios. Voltando ao Colégio de Gien, ensinou inglês e alemão, foi seu administrador até a Páscoa de 1903, quando as “Leis de Combes” expulsaram as Congregações religiosas da França. Brutalmente fechado, outra vez coube ao padre Richert concluir os negócios. Do que, indo à Bélgica, juntou-se aos confrades das outras comunidades francesas, lá refugiados.

Mas não restaria a longo em Mouscron. Em decorrência da expulsão, os Barnabitas haviam ultimado preparativos para virem ao Brasil, ao que ele se dispôs com generosidade. Assim, a 2 de agosto de 1903, embarca no porto de Le Havre, à frente do grupo destinado ao Pará. Outro grupo partiria, em seguida, rumo a Pernambuco. Ambos aportaram em terra brasileira a 21 daquele mês.

Foi o bispo do Pará, Dom Francisco do Rego Maia quem, considerando a escassez de clero secular, convidou pessoalmente os Barnabitas para a sua diocese. O prelado e o superior da Província Franco-belga, padre Henri Abbondati, assinaram o contrato inicial em Paris; tão genérico que, como ocorreu, dava espaço a ulteriores modificações. Em Belém, Dom Rego Maia ofereceu-lhes a direção do Seminário Diocesano Nossa Senhora da Conceição (anexo ao Arcebispado), prometendo-lhes, ao mesmo tempo, a Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré. Em 17 de dezembro, o padre Richert assina com ele um contrato específico, confiando aos Barnabitas a total gestão da casa de formação; no dia 19, nomeava-o reitor. Quanto à paróquia, somente puderam assumi-la em janeiro de 1905, sob contratos renováveis anualmente. Após os Barnabitas terem deixado a gerência do seminário, por vontade do novo arcebispo, Dom Santino Maria da Silva Coutinho, o padre Richert foi nomeado pároco de Nazaré, tarefa que exerceria de 1906 a 1917.

Já residente no Rio de Janeiro, o padre é reitor do Colégio Zaccaria, de 1919 a 1921, por indicação do Capítulo Geral da Ordem, do qual tomaria parte em 1907, 1910, 1919 e 1922, na Itália; eleito por tres vezes o seu moderador. Na assembléia de 1907, foi eleito Visitador Geral da sua Província Franco-belga, com poderes para o Brasil, da qual dependia. Em 1910, primeiro superior da recém-criada Província Brasileira, cargo reconfirmado nos três capítulos sucessivos.

Em dezembro de 1921, foi eleito Conselheiro Geral. Regressando à Europa, foi enviado à Austria, na condição de visitador extraordinário e, homem de pulso, religioso indicado pela Ordem para pôr termo à situação dos religiosos, aonde os Barnabitas serviram por 300 anos na corte dos Habsburgos (até sua desintegração em 1918), missão que muito o desgastou, física e moralmente: a sua intervenção incidiria na fastidiosa supressão da Província Austríaca. No Capítulo de 1922, obtém um favor ardentemente esperado: retornar ao Brasil sem os encargos de sempre, terra que amava e campo fecundado com mais de 20 anos de esforços.

Na então Capital Federal, além dos ofícios de provincial e reitor do colégio, havia ensinado alemão, inglês e religião. Dedicara-se ao ministério da confissão e da direção espiritual, abrira o Seminário Menor em Jacarepaguá. Grande desejo tinha de trazer as Irmãs Angélicas ao Brasil; envia, em 1920, duas jovens postulantes à Itália: a paraense Daria Lobato faleceria precocemente, enquanto a carioca Flávia Monat da Rocha tornar-se-ia superiora geral das Angélicas de São Paulo. E foi ele quem as trouxe, em 1922, estabelecendo-as no Rio de Janeiro.

Emilio Richert foi, sem dúvida, homem de personalidade fascinante e atividade incansável. Com razão, ele foi considerado não só “um personagem dos mais relevantes na fundação da Província Brasileira”, como também dos “elementos mais solicitados quando estavam em jogo os interesses da Congregação”. Todavia, embora reconhecendo-lhe virtudes e dotes, não se ignorava que, muitas vezes, fazia sentir sobre os outros o peso da sua autoridade e da sua inteligência dominadora. Ele mesmo o era consciente e sofria, tanto que mais vezes solicitou exoneração de seus encargos. Mas, como a responsabilidade das diversas e ainda recentes obras no Brasil gravitavam em torno de si, os demais acabavam forçados a reconhecer que, para afrontar determinadas situações, precisava-se mesmo de semelhante espírito. E, na ausência da pessoa ideal, findava sendo a mais apta.

Diversidade de carismas

Quando Dom Santino Maria da Silva Coutinho assumiu a arquidiocese do Pará, em junho de 1907, além do seminário, os Barnabitas já moravam na Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, desde janeiro de 1905. Mas tudo vigorava à base de  contratos temporários. Demonstrando-se descontente por certas cláusulas referentes ao seminário – que dava à gestão dos Barnabitas grande autonomia –, com suas razões, o arcebispo reivindicou a sua prerrogativa de “primeiro reitor e responsável” pela formação do seu clero. E introduziu modificações que o padre Richert, tendo em mãos o contrato assinado com Dom Francisco do Rego Maia, empenhando ambas as partes por 25 anos, julgou inaceitáveis. Após quase um ano de paciente negociação, o padre optou pela rescisão do acordo. Não sendo, todavia, o tipo de sair perdendo, obteve, em compensação, a estabilidade na gestão da Paróquia de Nazaré, depois concedida aos Barnabitas ad nutum Sanctae Sedis (por disposição da Santa Sé).

A essa altura, a Ordem havia finalizado acordo com Dom Francisco de Paula e Silva para se estabelecer na recém-criada Diocese do Maranhão, em Caxias. O encargo de iniciá-la coube ao padre Francisco Richard, até então superior e pároco de Nazaré. Substitui-lhe, assim, o padre Emilio Richert, que por sua vez assume a paróquia em 3 de novembro de 1908.

É preciso saber que, se por algum tempo houve espinhosidade nas relações do arcebispo com os Barnabitas, certamente não o foi duradouro; ante as vozes que corriam em mérito, o próprio padre Richert replicou: “Ça n’est pa vrai!” (Isso não é verdade!). Acontecera, entretanto, que o prelado, assim como o padre, tinham temperamentos e caráteres diferentes, o que inevitavelmente os levou a se confrontarem bem cedo. De resto, a nomeação do padre Richert como pároco de Nazaré foi preferida pelo próprio Dom Santino. Vê-se isto do fato que, havendo sempre encontrado em Belém pessoas que falavam o francês, o padre jamais aprendera direito o português, que o escusava do ministério da pregação. Apresentando ao arcebispo tal limitação, recebeu em resposta que o pároco não teria que pregar ele mesmo, contanto que o fizessem seus coadjutores. Depois, quando em 1916, o padre Richert viria transferido para o Rio de Janeiro, Dom Santino se opôs à sua partida, permitindo-lhe deixar Belém somente no ano seguinte. E foi com o seu apoio que o barnabita deu incremento às múltiplas atividades paroquiais e, um ano depois, iniciaria os trabalhos de construção da que seria uma das mais belas basílicas da América.

Construtor da Basílica

Dom Santino era paraibano. Ele pastoreou a Igreja do Pará por 16 anos, deixando-lhe as marcas do seu dinamismo e da sua vigorosa energia. Soube captar a fundo a religiosidade paraense e a importância da então bi-secular devoção à Virgem de Nazaré. Entregando a paróquia aos Barnabitas, recomendou se preservasse, antes, se engrandecesse o mais significativo patrimônio do seu povo. Mas não falou em nova construção.

O primeiro pároco barnabita, padre Francisco Richard, executando, todavia urgentes reparos na igreja de 1884, necessários sobretudo por uma rachadura insanável, apercebeu-se tão logo que bem pouco ganharia em resultados. Ademais, a crescente afluência de fiéis e a expansão da cidade, que já em 1900 contava com 100.000 habitantes, fizeram com que a idéia de uma nova estrutura tomasse vulto. Para tanto, não sem granjear inimizades, cortou os abusos e reorganizou as finanças da paróquia. As ofertas avultaram e ao término da sua administração (1908) havia em caixa 100 contos já destinados à empresa. Mas foi a decisão de seu sucessor, padre Richert, que permitiu a concretização dos planos. Ambos franceses, talvez imaginassem oferecer aos devotos paraenses um verdadeiro centro de espiritualidade mariana, como já o conheciam em Lourdes.

Um fato tornou-se decisivo. Geralmente, a missão dos Visitadores termina em inócuos relatórios. Em 1908, esteve em Belém o padre Luigi Zoia, na qualidade de visitador Geral da Ordem. O seu apoio e incentivo tornar-se-iam históricos. Vivendo em Roma e profundo conhecedor dos monumentos da Cidade Eterna, contactou as autoridades religiosas e civis, sugerindo para o intento como planta geral uma redução da basílica romana de São Paulo extramuros. O projeto foi aprovado.

Em 24 de outubro de 1909, o arcebispo Dom Santino, solenemente, lançou a pedra fundamental nos fossos do que há pouco fora um coqueiral, ao lado da então matriz. Os trabalhos começaram no início do ano seguinte. Em meio à multidão, o governador do Estado, Augusto Montenegro, e o prefeito de Belém, Antonio Lemos. Entre os jovens confrades que ladeavam o padre Emilio Richert, um deles comungava melhor dos mesmos sentimentos: era o padre Afonso Di Giorgio. Ignorava, todavia, seu destino de continuador das obras e consumador daquele utópico empreendimento; assim como o poeta maranhense Euclides Faria, jamais avaliara que a sua composição “Vós sois o Lirio”, composta para essa ocasião, tornar-se-ia o hino sacro oficial da grandiosa devoção nazarena.

Agora, sob a metódica administração do padre Richert e graças à fartura da borracha, à renda das festas e à cooperação dos fiéis, em cinco anos, pôde-se levantar a cumeeira! Medindo 62 metros de comprimento por 24 de largura e 28 de altura, careceu fosse parte do prédio assentada sobre uma cripta, exigida para a necessária elevação do terreno e preservá-lo da umidade; mas, sobretudo, a requeriam o estilo basilical e a imponência do monumento. Esta cripta (30×23) é rodeada por um canal e uma segunda parede. As suas abóbadas, feitas com tijolos de cimento, sustentam-se sobre numerosos pilares de pedras. A nave central do edifício, com o transepto e a abside, forma uma cruz latina. Ao longo de cada lado da nave central corre uma nave lateral; são divididas por colunas de granito roseo assentadas sobre forte base de rocha diorito; acima, os arcos sustentam as paredes. Ao todo, contam-se 36 colunas separando as naves.

A 1ª Guerra Mundial diminuiria o ritmo dos trabalhos; bem mais drástica mostrar-se-ia a queda da borracha amazônica na economia mundial. Ainda assim, quando o padre Richert transfere-se definitivamente para o Rio de Janeiro, em 1917, tudo isto já havia sido feito, inclusive, uma das torres já se erguia monumental, de 45 metros.

Em abril de 1918, a paróquia passaria às mãos do padre Afonso Di Giorgio. Desde então, até a sua morte (em dezembro de 1962), mesmo quando isento dos ofícios de superior e de pároco, a direção das obras dependeria sempre dele.

Em Nazaré da Galileia, ao norte de Israel, a Igreja da Anunciação é construída no local onde, conforme a tradição grega-ortodoxa, ocorreu a Anunciação do anjo à Virgem Maria. Em Belém do Pará, os Padres Barnabitas construíram a Basílica de Nazaré para abrigo da sua pequena Imagem, aqui encontrada por Plácido, em 1700.

Retocado bastante. Publicado originalmente em:
Domingo, 8 de outubro de 1989, O Liberal (4 CÍRIO/89)