A partir de hoje, a Basílica Santuário de Nazaré publicará textos retirados do livro “Ritos Barnabiticos”, escrito pelo Padre Miguel Maria Facero, traduzido por Padre João Maria Carlos Colombo – 1965. No livro, dedicado pelo padre aos noviços, você saberá sobre os princípios básicos da virtude religiosa dos Clérigos Regulares de São Paulo (Barnabitas).

Boa leitura!

A PERSPECTIVA

Quem quiser ser Barnabita, uma vez esclarecido acerca das Constituições da Ordem e dos diferentes ministérios que nela existem, será admitido, embora por um primeiro período de prova, a fazer parte dessa família religiosa. É claro que antes deva ter vivido certo tempo em alguma comunidade, aí tomando conhecimento das tradições e hábitos da nossa Ordem; assim como ter tido contatos pessoais indispensáveis para estreitar as primeiras relações de fraternidade e, finalmente, ter preenchido as formalidades impostas pelas Regras e pelos Cânones.

Ainda assim, não será já propriamente Barnabita, mas apenas aspirante-barnabita.

Será, então, introduzido na “Aula Capitular”, diante de todos os Confrades aí reunidos. Ajoelhar-se-á em frente ao Padre Superior e à pergunta; – que queres? – ele responderá: – servir a Deus na Ordem dos Barnabitas.

E se o superior insistir, pedindo-lhe o motivo e a finalidade, o postulante, se realmente tem a verdadeira intenção de servir ao Senhor, não poderá responder outra coisa se não: – a fim de dar glória a Deus e salvar a minha alma.

O Superior, então, sem hesitação alguma (tão seguro ele se sente na eficácia do seu gesto), apontará imediatamente ao postulante a atitude que deve tomar para o resto da vida. Apresentar-lhe-á uma cruz e a colocará sobre o ombro esquerdo dizendo-lhe as palavras de Jesus: “Quem quiser vir após mim, tome a cruz e siga-Me”.

Nas Ordens Religiosas não há troca de vãos cumprimentos, ainda mais nesse primeiro encontro. O postulante deve saber o pronto, sem subterfúgios, as obrigações que o esperam, o que deverá fazer em qualquer circunstância, em qualquer ministério, em qualquer lugar e sempre, pois que na vida religiosa o essencial é carregar a própria cruz e seguir Jesus. Melhor: essa é que é a vida religiosa! E isso tudo o superior diz na mesma hora para que o postulante não tenha ilusões. O que será depois a sua vida ninguém lho saberia dizer, nem ele prever. Isto, porém, é certo: frente a qualquer dificuldade, sob o peso de árduos deveres, nas horas de angústias de alma, jamais terá o direito de dizer: – enganaram-me. A cruz que lhe defronta, mal o postulante passa a soleira do convento, é a síntese mais plástica do seu futuro, do seu dever e de todas as conquistas.

Agora, vamos pensar um pouquinho e procuremos compreender bem.

Em que ocasião Jesus pronunciou aquelas palavras, que, como outras Suas, aniquilam os valores humanos, escurecem as perspectivas terrenas, contradizem todo o instinto passional e abrem diante da alma caminhos inesperados e ideais nunca suspeitados? Palavras que impõem renuncias, prometem tribulações e exprimem lágrimas?

Se alguém quiser vir após mim, tome a sua cruz e siga-Me.

Essas palavras Jesus disse-as logo depois de ter anunciado sua própria Paixão e Morte.

  1. Pedro não as compreendeu e, forte pela dignidade, a que pouco antes Jesus elevara: – dar-te-ei as chaves do Reino – e, diria eu, já seguro da sua infabilidade, ousou contradizer a Jesus Profeta e exclamou: Abst a te, Domine: nunca Vos aconteça semelhante coisa: ser condenado, flagelado e morto!

Verdade é que Jesus profetizara, ao mesmo tempo, a sua ressurreição. Parece, no entanto, que S. Pedro não dera a devida atenção a essa palavra: o que mais o impressionou e sensibilizou foram as palavras que pregavam a humilhação e a morte.

  1. Pedro raciocinava com as vistas humanas e apenas estimava o que era o terreno. Por isso, Jesus mandou que se calasse e o afastou: vade post me, porquanto, se o Apostolo bem entendia as coisas humanas, revelava nada compreender das coisas divinas: qua Dei sunt.

Foi nessa ocasião que Jesus disse aos discípulos: se alguém quiser vir após mim, tome a sua cruz e siga-Me; portanto, foi na mesma ocasião que profetizara a própria Paixão, a própria Morte, a própria Ressurreição, senão como os discípulos poderiam compreender?

Vamos, pois, ordenar as ideias e orientar os passos.

Primeiro Ele: a Jesus sempre em primeiro lugar, também na dor; ou antes, acima de tudo, na dor, pois Ele faz questão disso. Alias, se assim não fosse, como poderíamos conhecer o caminho? Primeiro Ele; vergando sob o peso da cruz, silencioso, manso, adorável. Ele diz alguma palavra? Sim, é a invocação do perdão, é o conforto para as dores, é a promessa do Paraíso. Primeiro Ele, que cai e se levanta sempre. Primeiro Ele que aceita os confortos humanos, mas apenas para dar os dons de sua Graça e eternizar na historia aquele que lhe sustenta, embora por breves momentos, a sua cruz, enxuga-lhe o suor e se compadece de suas penas.

Primeiro Ele, pois Ele quem deve fixar a meta, marcar o ponto preciso de chegada, a hora final; pois é ainda ele quem deve dar o sinal de despertar e decidir para sempre o estado permanente da ressurreição e da glória: post três dies resurgam. Depois de três dias e nem um minuto a mais; aos despertar dos primeiros albores da Páscoa: a aurora já seria tarde demais. Desde a eternidade já está marcado aquele instante de glória que terá uma ressonância interminável.

O itinerário está, portanto, traçado do inicio ao fim, com suas estações, suas etapas, com muitas dores e pouquíssimas satisfações: e o caminho só teve um nome que nunca mudará: Via Crucis.

“Quem quiser vir após mim…” Mas quem quer? Por esse caminho? Absit, Domine! Diríamos nós também com S. Pedro.

Ninguém quer meter-se em caminho tão repugnante, com aquela cruz, com aquele peso, quando na terra há estradas bem asfaltadas, matizadas de flores, sombreadas de tantas delicias. Estradas que podem ser percorridas com toda liberdade de movimentos, rindo, cantando saltando e correndo.

Absit, Domine. Não, Senhor, ninguém quer. Vosso convite não foi aceito. Vossa palavra perde-se sem resposta. Vossa espera terá todas as desilusões. Ficareis só, Jesus, no vosso caminho. A nossa natureza quer a alegria, não a dor: anela pela vida e não quer, não quer morrer. Por isso, os homens nunca acreditarão em Vós e dirão sempre com S. Pedro: Absit, Domine.

Mas Jesus não recua frente às razões da nossa natureza e aquae sunt hominum, e teima em repetir: Se alguém quiser vir após mim…

E se ninguém quiser, Ele saberá com a sua graça, sem forçar de forma alguma (mistério profundo) a liberdade humana, fazer com que alguém queira.

Por isso, serão milhões a querer.

Esses serão designados assim: os chamados, pois ninguém poderá querer sem ser chamado; e chamado por Ele com tal voz, que todos poderiam resistir, mas ninguém, se realmente for chamado, jamais lhe quererá resistir.

Qual o que, estradas asfaltadas, margens de rosas, sombras deliciosas de álamos, qual nada! Preferem-se os caminhos íngremes e espinhosos, onde os abrolhos espetam e as pedras fazem cair. Preferem-se pés descalços, membros a transpirarem, e sobre os ombros o peso, seja qual for a sua medida ou a sua forma…

Assim também não. O peso deve ter a forma da cruz, pois Jesus só carrega a cruz e não outra coisa; cada um deve, por tanto, carregar a sua cruz; tome a sua cruz.

* * *

Assim, pois, a cruz de cada um é inalienável e inconfundível, como é para cada um a fisionomia, o caráter, o gosto, a paixão. Diria até que é justamente a sua fisionomia, o seu caráter, o seu gosto e a sua paixão, que juntos fazem a sua cruz. Não é preciso fabricar a cruz, ela se faz sozinha. O que importa é ter bastante introspecção para vê-la, e distingui-la dentre um mundo de coisas que de cruzes têm apenas a aparência e de outras que se afiguram como coroas, mas que, de fato, são cruzes; cruzes que é preciso levar com dignidade sem que seu peso apareça, e sem descarrega-lo sobre outros, porquanto ninguém imagina (falo sem metáfora) que há dignidades que nos esmagam. Há coisas que aparecem aos homens qual um mister agradável, um trabalho rendoso, uma satisfação sem par, e, pelo contrario, são apenas um profundo tormento de espirito, um campo eriçado de dificuldades, um conjunto de lagrimas e de sangue que outros chamam de perolas ou julgam rubis. É preciso, portanto, levar a própria cruz feita de renuncias cotidianas de ideias, de vistas,  de iniciativas, as quais têm todas muitas vezes características da verdade e resultado garantido. É preciso levar a própria cruz feita de incompreensões, de desentendimentos, de suspeitas que nem sempre é possível esclarecer, enquanto a alma parece dissolver-se em espirituais hemorragias interiores… é a cruz, própria de cada um, que não pode ser sustentada por nenhum Cirineu, porque ninguém a pode ver ou tocar, nem mesmo quem carrega, pois ela é apenas sensível.

E se depois lhe acrescentam as deficiências espirituais, a paixão que ferve, o temperamento que se rebela, a ignorância que inibe, a tentação que acomete, ó quantas cruzes que aumentam o peso da cruz, e que nos provocam o desanimo e nos fazem cair!

Felizmente, Jesus não disse somente: carrega a cruz, mas acrescentou: segue-me, sequatur me!

Nisso é que está do lado bom, a nossa característica de religiosos que levamos a cruz, seguir a Jesus.

Também no mundo os homens do mundo carregam a cruz. Mas de que modo? Imprecando, blasfemando, caindo. E isso porque no caminho falta-lhes a direção, o guia; porque ninguém olha para a meta. Daí as deserções, os extravios, os recuos, os passos inúteis, as paradas e os desesperos.

Nós, ao contrario, fieis as ordens, seguimos a Jesus. Ele é o caminho, o modelo, a Porta, o Ponto Final.

Bem aventurados os que O seguem bem de perto! Colocando os pés nas suas pisadas não se sentem as asperezas: Ele aplainou-as. Dir-se-ia até que aquelas pisadas são suaves, quentes, repousantes. Perto dele, ouvem-se bem suas palavras, e, depois, basta ver Jesus para sermos encorajados até a alegria e gozarmos da cruz como de uma dadiva privilegiada. Perto dele, estamos sempre tão em contato com Ele, que… basta tocá-Lo para sermos curados se enfermos, confortados se aflitos, vivificados se paralíticos. Perto dele estamos sempre ao alcance de sua mão que nos abençoa e socorre, que atrai e levanta.

É perigoso seguir Jesus de longe; entre Ele e nós podem imiscuir-se outros mestres que falsificam a voz, outros modelos que deturpam as feições. De longe, arriscamo-nos a perdê-Lo de vista, tão grande é a nossa miopia e tão escassa a luz do dia.

É tão verdadeiro que temos que ficar perto de Jesus, que ele não se contenta em dizer-nos: segui-me, mas acrescenta o que é mais intimo e mais perfeito: – fixai-vos em mim: Manete in Me.

Dar-se-á, então, a identificação das ideias, dos sentimentos, da vida. E a nossa cruz? Acabará sendo a sua cruz, e nós seremos crucificados com Ele. Christo confixus sum Cruci; vita mea est abscôndita cum Christo in Deo; mas, crucificados com Ele que ressurgiu, acabaremos sentindo tal gaudio na alma, a ponto de nos gloriar – mihi absit gloriari nisi in cruce Domini nostri Iesu Christi – felizes de sermos com Ele os continuadores da sua obra redentora: adimpleo quae desunt passionum Christi in carne mea procorpore Eius quod est Ecclesia. Latim que não vou traduzir, pis qualquer um que conheça a sabedoria Paulina da Cruz o pode compreender.

A cruz, então, levada assim, compreendida assim, não é senão uma expressão de amor, pois tem o mesmo sentido, idênticos transportes, com todas as tonalidades da alegria, ternura e êxtases, que vão do beijo que se desfaz em lagrimas, até o jubilo eu explode em canto: nos autem gloriari oportet in cruce.

Como tudo é verdadeiro o que o devoto Gerson escreveu no cap. XII do II livro da Imitação de Cristo! Basta o titulo para condensar toda a verdade aí contida: regia voa, via régia. Por aí passou, de fato, o Rei para a sua vitória, pois pregado na Cruz deixou aí todo o fulgor inextinguível da sua divindade, atraiu todos a Si, e começou a reinar.

“Se alguém quiser vir após mim, tome a sua cruz e siga-Me”.

E agora sabemos onde vamos acabar, tanto na morte como na glória, qual é a alma inteligente e sábia que não queira?

Bem-aventurados nós, os religiosos, porque quisemos. O querer produz o merecimento; por isso não, não cansemos de querer, querer teimosamente, até a morte.

Que importa se por causa disso tenhamos de carregar a nossa cruz? O essencial é querer ir após Ele, segui-Lo de perto, mas tão pertinho e com tamanho amor que nos fixemos nele, para sermos crucificados juntos, e juntos morrermos: nam si commortui sumus et convivemus, si sustinebimus et conregnabimus (II Tim. 2.11)

Celestial perspectiva da Via Crucis!

Fixemo-la bem em nossos olhos, em nossa alma: e a cruz que nos puseram nos ombros, naquele dia, levemo-la com honra, pois é cruz de Jesus; com amor, pois é aquela que nos leva à gloria; e sempre em frente, sem nos desviar, olhando tão somente para quem nos procede, venite pos Me: – quem me segue não anda nas trevas, mas tem a luz da vida, porque é luz de ressurreição, é fulgor de glória.