No segundo domingo de Páscoa completam-se, em Belém do Pará, 26 anos da procissão da Festa da Divina Misericórdia, primeira e mais antiga do Norte do Brasil, com a autorização do Arcebispo Dom Vicente Joaquim Zico – de santa memória. Por quatro anos esta procissão saiu da Praça Waldemar Henrique vindo à Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, onde eu – jovem padre e pároco – a recepcionava com satisfação.

 

Imagem da procissão em Belém na Basílica Santuário de Nazaré

Na docência da Teologia, lembro-me haver mostrado a estudantes leigos e, em maioria, futuros clérigos, que a MISERICÓRDIA não é tão somente um atributo divino, senão que, a própria essência divina! E ilustrava-o com lindos trechos bíblicos, mesmo veterotestamentários, como os do profeta Oséias, que apresentam o Senhor Deus como um pai (ou mãe) amoroso, irresistível à birra da criança (11, 1-9); e até como um cônjuge traído sete vezes que, todavia, não consegue deixar de amar (2, 1-25).

Mas foi bem depois, já com anos de vida religiosa e sacerdotal, que fui iniciado à espiritualidade da Divina Misericórdia recebida por Santa Faustina Kowalska (1905-1938), na Polônia. Ela entrara para a vida religiosa em 1924, na Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Misericórdia. Seu confessor, Beato Miguel Sopoćko, exigiu-lhe escrevesse as suas vivências num Diário espiritual. Assim, não foi de sua própria iniciativa, mas por exigência do padre confessor que herdamos dela a descrição das suas vivências místicas n’algumas centenas de páginas. São, na verdade, ensinamentos fundamentais, corretos e edificantes, em nada contrários à ortodoxia da fé evangélica.

Barnabitas concelebram no primeiro Santuário da Divina Misericórdia – Cracóvia.

 

– “Ainda que a alma esteja em decomposição como um cadáver e ainda que humanamente já não haja possibilidade de restauração, e tudo já esteja perdido, Deus não vê as coisas dessa maneira. O milagre da misericórdia de Deus fará ressurgir aquela alma para uma vida plena” (Diário, 1448).

 

Barnabitas visitam o Santuário novo de São João Paulo II – Cracóvia.

Apelidada por Jesus de “Apóstola” ou “Secretária” da Divina Misericórdia, Irmã Faustina é considerada como fazendo parte de um grupo dos mais notáveis místicos do Cristianismo. Sua missão imediata foi preparar a Igreja para o grande Jubileu, permanecendo válido o objetivo primordial: preparar o mundo para a vinda definitiva do Senhor. Aproveitando disso, o Papa São João Paulo II, consolidou a espiritualidade misericordiosa divulgando-a largamente – inclusive em seu magistério pontifício (sua primeira encíclica foi a Dives in Misericordia, 1980) –, canonizando a Santa polaca (30 de abril de 2000) e instituindo a Festa para toda a Igreja, decretando para isso o Segundo Domingo da Páscoa.

Dou-me conta que a minha afinação com a Misericórdia ajustou-se como um dos efeitos colaterais do coronavírus. Familiarizara-me com ela quando as irmãs Araújo (Carmem, Marta e a matriarca Zenóbia) começaram a sua difusão em Belém, na década de 90, época em que conquanto lhes apoiasse, não participava pessoalmente de seus projetos e encontros de oração. Com sacrifício e tenácia, o grupo alcançou a propriedade da Casa da Misericórdia Santa Faustina, na Campina.

Eu ouvia daqui e dali nos grupos e comunidades, tinha sido edificado de um jovem casal do interior que acordava todas as madrugadas, às 3h, para rezar o Terço da Misericórdia. Entendi depois que há fileira imensa de apóstolos – de fato se chama Movimento Apostólico –, que nessa mesma hora da manhã e da tarde, forma inquebrantável corrente ao redor do planeta suplicando ao Pai que, pela paixão dolorosa do seu dileto Filho, tenha misericórdia do mundo inteiro. E, dirigindo-se a Jesus, confessam sua esperança nele: “Jesus, eu confio em Vós!”.

 

Casa Da Misericórdia Santa Faustina – R. Pe. Prudêncio, 379 – Campina, Belém – PA

Lembro que há um ano, na semana da Oitava de Páscoa passada, com o fechamento da igreja desde a festa de São José e celebrações à distância, nós Barnabitas preparávamo-nos e aos fiéis para a Festa no domingo seguinte rezando o Terço da Misericórdia, às 15h, pela internet, com grande acompanhamento de devotos. Mas eis que no dia 16 de abril, quinta-feira da Oitava, não mais tive condições de celebrar a Santa Missa. Invadiam-me um desconforto e mal-estar generalizado, próprios da infecção de covid, forçando a retirar-me de cena. No domingo seguinte (19/04), exatamente o Domingo da Divina Misericórdia, as celebrações transmitidas da capela do convento voltaram para o altar-mor do templo mariano, fechado, todavia.

 

Essa foi uma forte vitória e grande alegria para a nossa comunidade religiosa que, com fé operante e caridade pastoral, sustentaria a obra evangelizadora da Basílica Santuário de Nazaré desde o início da quarentena, como o tem feito até hoje: eu, juntamente com os confrades Pe. Giovanni Incampo, Pe. Luiz Carlos Gonçalves, Pe. Francisco Cavalcante, Pe. Deogratias Muderhwa e Pe. Rosinei de Souza. Acolitavam-nos nos primeiros meses os jovens religiosos apenas chegados do noviciado: Don Cleiber Farias, Don Edvando Soares, Don Daniel Brito; substituídos no outro semestre por Don Bruno Barbosa, Don Josué Bosco e Don André Nascimento.

Na minha internação hospitalar, com grande parte dos pulmões infectados e dominado por devastadora fraqueza, uma breve mensagem dizia-me: “Um apóstolo da Divina Misericórdia não pode morrer assim!”. Foi um poderoso estímulo! Eu rezo o Terço da Misericórdia várias vezes ao dia, o ensino e o divulgo, explicando a sua utilidade: o TMi é fácil de aprender, saboroso de rezar, não demora e quem o reza com fé nunca fica sem um sinal de Deus! Como padre, já experimentei e creio na promessa de Jesus: “Aos sacerdotes que proclamarem e glorificarem a Minha misericórdia darei um poder extraordinário e ungirei suas palavras, e tocarei os corações daqueles a quem falarem” (D. 1521).

Além da meditação, santa missa, liturgia das horas e devoções cristãs, rezo-o ao deitar-me até chegar o sono e, ao acordar ainda escuro, dedico-me a interceder por situações impossíveis, cuja lista só tem aumentado. Ensina-nos a Palavra de Deus: “Rezai uns pelos outros, e vos curareis. Muito pode a oração solícita do justo. Elias era homem frágil como nós; porém, rezou pedindo que não chovesse, e na terra não choveu. Rezou novamente, e o céu soltou a chuva e a terra deu seus frutos” (Tg 5,16-18).

Numa das três peregrinações ao Santuário da Divina Misericórdia, em Cracóvia, encontrei a oração de Consagração do Mundo, escrita por São João Paulo II, numa tradução portuguesa assaz penosa. Eu a arrumei melhor e a inserimos ao final do TMi recitado em nossa Basílica Santuário de Nazaré.

 

Consagração do mundo à Divina Misericórdia

(Escrita por São João Paulo II)

Deus, Pai misericordioso, que revelaste o teu amor em teu filho Jesus Cristo, e o derramaste sobre nós pelo Espírito Santo consolador, nós te confiamos, hoje e sempre, o destino do mundo e de cada homem e mulher.

Inclina-te sobre nós, pecadores, cura a nossa fraqueza, vence o mal; faz com que todos os habitantes da terra conheçam a tua misericórdia, para que em ti, Deus uno e trino, encontrem e renovem sempre a esperança.

Pai Eterno, pela dolorosa paixão e gloriosa ressurreição de teu Filho, tem misericórdia de nós e do mundo inteiro. Amém.

Jesus, eu confio em Vós!

 

Pe. Ramos é Sacerdote religioso barnabita, diplomado em Filosofia (Faculdade do Mosteiro de São Bento – SP), formado em Arquivística (Escola Vaticana de Diplomática junto ao Arquivo Secreto – Roma), bacharel em Teologia (Pontifícia Universidade Urbaniana  – Roma) e licenciado em Teologia Dogmática (Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma).